sábado, 31 de março de 2012

Chemin de l'argent


Os caminhos outrora de prata
Manchavam de sangue o tecido do meu corpo
O fim dos tempos sucumbiam na minha carne
Mascarando o peito dos meus pés de todas as trampas.

O veneno vampírico dos homens entorpecia o meu saber
Queria cortar esse semblante, dilacerar os meus trapos
Arrasar e sugar para fora todas as trancas
Que me fatigavam vagarosamente numa alma inerte.

Os caminhos outrora de prata
Percorria-os repleta de seiva humana
Não haveria outro pranto para a minha cura
Nada mais restava na minha mente terreal.

Estava mais cega por cada dia que percorria
Por entre os vórtices de todos os mundos
Dissipara cada linho da minha farta pele
Mantendo-a como asilo da minha mera existência.

Assim pereci junto da árvore dourada,
Absorvendo o leite do Mundo
Sugando da resina à formiga
A sede de viver que não saciava 
Ouvindo o quebranto de toda a melodia.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Lunae


Vira a bruma deslizando, qual veste
Seda macia nos cantos lunares
Percorrendo-Lhe como gotas facetadas de água
Eram pérolas cantantes de Artemis
Rogadas nos olhos celestes
Daquela face láctea não mais encantada.
Percorrera os véus do mundo a insana,
Penetrando nas esferas solares
Tentando tingir-se das suas luzes
Para que algum daquele rubor fosse seu.
Como desejara tal quentura,
Nas planícies só vislumbres entristecidos
Como borrões escarlates sem cantiga
Esticava Ela as suas esferas de cal
Na tentativa que Lhe fosse concedida
Tal quentura ainda que transparecida
Daquele Sol que nunca Lhe pertenceu.

Pieds de rosée

Eu sou além da lua orvalhada de estrelas
Num reino impetuoso de arvoredo e terra
Onde planto os meus pés saturnos na maciez
Das folhas e cascos adormecidos na clareira
Vagos pensamentos da essência de outrora
Como relâmpagos desta mesma noite
Violando o ventre perdido da minha raíz.

Bona Dea vivante

Cœur de la divinité - IV

 Eros et Psyche

IV

Les Quatre Ouvres de Psyche
Grains

Colocada num compartimento fechado, Psyche, depara-se com um gigantesco monte de grãos. Como se a colheita de diversos anos de todos os campos do mediterrâneo, estivesse agora transformada numa pilha de minúsculas partículas térreas, no fundo daquela parede de pedra.
Afrodite fora bem clara nas suas tarefas. Teria de separar todos os grãos por cada espécie no espaço de uma noite. Apenas a visão daquele monte serviria para se manter já cansada mesmo sem ter começado a prova.
Decide então, dar inicio ao teste, expirando a derrota das narinas.
Sentando-se próxima da base da pilha, a bela rapariga começa então a separar grão a grão de acordo com o que lhe havia sido pedido, fazendo pequenos montes individuais. Com o passar das horas, a exaustão toma-lhe o corpo, a vista turva-lhe pesadamente, ao ponto que caí sobre o amontoado de grãos, adormecendo completamente esgotada.
Durante o seu profundo sono, surgem sorrateiramente das brechas da divisão pequenas e inúmeras formigas que se aprontam dignamente a empilhar todos os grãos pela respectiva ordem, separando um a um cuidadosamente.
Em plena madrugada, Psyche acorda surpreendida visto que toda a tarefa fora terminada prontamente dentro do prazo.

La Laine D'or
A missão seguinte, consistia em que Psyche se encarregasse de trazer diante de Afrodite, alguma lã dourada produzida unicamente pelos lendários carneiros das terras longínquas. Visto que a sua localização era remota, a bela rapariga, encaminha-se na difícil jornada pelos seus próprios pés, possuindo somente um cantil de pele de cabra com alguma água e um pedaço duro de pão.
Após longos trilhos sob a quentura do Sol, Psyche, encontra por fim os carneiros da lã dourada. Sem se precaver e pensando que bastaria pôr-lhes a mão como se se tratassem de comuns bezerros esperando pela tosquia, a rapariga é sobressaltada por toda uma armação de chifres espiralados, de cascos brutos e dentes maciços e vorazes na sua direcção. Acabara por entrar no seu território, tentando violar aquilo de que mais precioso possuíam as subtis criaturas. Nunca esperando encontrar nelas o seu leito de morte.
Subitamente, entre os juncos, Psyche ouve uma voz sussurrante e familiar que lhe aconselha discretamente:
Junto ao negrume dos espinheiros,
onde carneiros vão beber
o licor das margens do rio,
alcança as pontas dos espículos
e verás concluído o teu desafio.
Assim se encaminhou a rapariga, e nas pontas daqueles mesmos espinheiros, tal como a voz suave proferira, fios de lã dourada esvoaçavam pendentes, qual bandeira ao vento.

L'eau

Desde criança que ouvira falar do Rio Estige, ou como os antigos o intitulavam, o Rio da Imortalidade, criado pelo próprio Hades. Mas nunca pensara que um dia o iria presenciar, e principalmente que teria de colher da água mais pura de todos os mundos.
Com um delicado frasco entre as mãos já calejadas, Psyche, encontra-se diante da sua mais impossível tarefa. Teria de escalar a alta e íngreme montanha para que enchesse daquela água o vidrinho que possuía .
Deu assim inicio à escalada, tendo numa só mão o frasco, que fazia com que a tarefa fosse ainda mais complicada do que já era na realidade. Puxou a sua vontade como um corpo pelas rochas, cortando-se e empoeirando-se nas mesmas. Subiu até onde conseguia, pé a pé, com uma só mão na escarpa. Até que o deslize se antecipou, o pé derrapara e todo o seu corpo fora sugado numa grande queda, deslizando velozmente numa dor infinita.
Depois disso, só se lembrara da maciez dum solo movível, não conseguia abrir os olhos na totalidade, mas julgara ver vislumbres de asas batendo forçosamente contra o vento, e de um grito agudo que lhe entorpecia ainda mais a audição.
Zeus havia lhe enviado as suas águias, surgindo do azul celeste. Com o bico dourado e aguçado retiraram-lhe o frasco da mão. Voando com Psyche montada, até ao cume da montanha onde nascia a fonte do Rio Imortal, onde o vidro por fim se enchia daquela água.

Le Beauté de Perséfone

Afrodite enraivecida pelo sucesso da bela rapariga, decide propor-lhe a quarta e última tarefa.

A fim de acabar de vez com a vida da rival, a Deusa pede a Psyche que esta desça até ao Submundo, inventando por entre artimanhas que tinha perdido um pouco da sua beleza ao cuidar do seu filho Eros, e que necessitava de um pouco da beldade da Soberana daquele mesmo Reino.
Afrodite estava certa que assim que a rapariga fizesse o pedido a Perséfone, esta nunca mais regressaria viva, pois quem se atreveria a fazer tal pedido à esposa de Hades?

Psyche, sendo ingénua lança-se ao abismo sem mais demoras. Descendo a escadaria espiralada até ao campo de Elísios. Desaparecendo numa barca de madeira putrefacta, com uma alma obscura e sem face, de mantos negros sob a pele óssea.
Ao passar a margem do Rio das Almas, a rapariga, encontra Cérbero que ali guarda as portas do Submundo sob três cabeças ameaçadoras de cão. Psyche pede ao animal que a guie até à sua Rainha, e este, avaliando-a, decide realizar o seu pedido.
Perséfone era uma mulher, de veras, encantadora e característica, sentada magnificamente num trono de ébano enquanto segurava um facho com fumos negros, com cabelos do mesmo tom entrelaçados com papoilas e narcisos por cima de vestes escarlates.

Ao deparar-se com aquela jovem mulher no meio do salão obscuro, andando pausadamente com uma caixa ornamentada, Perséfone ergue-se do seu trono, e, estalando os dedos faz levitar dolorosamente a jovem mulher até à sua presença. Deixando-a próxima da sua respiração como se lesse a sua alma com o próprio olfacto.
- Que faz aqui uma reles mulher como tu? – Sibilou a Soberana, erguendo uma sobrancelha.
- Venho fazer-lhe um pedido – Disse Psyche, intimidando-se – Peço-lhe que me oiça, pois, ao que estou encarregue de lhe pedir, salvará a minha vida de toda a morte a qual vivo.
A rapariga, parecendo verdadeira e humilde a Perséfone, caí nas lajes do salão, ecoando à sua volta como um saco de ossos num beco esquecido.
- Interessante… - Murmurou a Rainha. – Qual é o teu pedido afinal?
Psyche elevou a caixa ornamentada até próximo da Soberana, e com toda a coragem que reunira pediu-lhe então para que enchesse o conteúdo com a sua beleza, para que assim pudesse ofertar a Afrodite, como lhe havia pedido.
Perséfone após ouvir aquele despropositado pedido, ergueu a cabeça para trás das costas e explodiu numa gargalhada estridente deixando a bela rapariga ainda mais intimidada com a sua reacção.
- Ahh…Afrodite – Disse a Rainha, rindo. – Se julgas que faço parte das tuas teias enganas-te minha cara, pois vou dar a esta rapariga exactamente o que lhe incumbiste.
Psyche arregalando os olhos de surpresa ergue de novo a caixa, a qual Perséfone sopra para o seu conteúdo gotas do seu sangue através dos suaves lábios rubros.
A bela rapariga não crendo na sua afortunada sorte, corre de volta para o templo de Afrodite com a caixa ornamentada entre as mãos, e completamente desgastada. Parando para repousar debaixo de uma oliveira, olha de relance para o resultado da sua quarta tarefa, pensando para si mesma, o quanto a sua beleza teria se desgastado com todo aquele conjunto de provas. Não resistindo então a abrir o seu conteúdo e a ser inundada por um sentimento profundo que a invadira. Adormecendo profundamente encostada ao tronco daquela árvore.
*
Curado da sua queimadura, desde o incidente da lâmpada, Eros lança-se ao encontro de Psyche, apanhando a beleza de Perséfone com as mãos em concha, e colocando-a de novo no interior da caixa ornamentada.
O Deus decide então acordar a rapariga do seu sono profundo, ordenando-lhe que devolva por fim o conteúdo da caixa a Afrodite.

*
L'amour et L'esprit
Extasiada por ver na sua frente, aquele que mais amava, Psyche, lança-se como a corrente forte de um rio até Afrodite. Esta, enfurecida por ver que a rapariga cumprira todas as provações não tem outro remédio senão engolir o seu próprio orgulho e tomar a beleza de Perséfone nas suas mãos.
Enquanto Eros voa rasgando os céus até ao trono de Zeus, onde de joelhos pede que, Este, o unifique com Psyche. O Deus dos Deuses, anuindo com a sua face decorada de luz, coloca a mão sob os cabelos encaracolados do jovem, arrancando-lhe uma mecha de pêlos dourados.
Misturando em sangue a mecha de ouro, Zeus dá a beber a Psyche, no interior de um cálice incrustado de sonhos, a doce poção. Ao qual, a bela rapariga, no sétimo gole vê as suas costas se rasgarem, surgindo delas, asas reluzentes de borboleta.
Tornando-se assim, imortal.
Fin

Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

Cœur de la divinité - III

Até mesmo um simples desejo, pode conter no seu núcleo o poder para toda a transformação.
Zeus


Eros et Psyche

III
Desamparada nos próprios subúrbios, vagueando como se a luz que a mantinha viva se tivesse apagado para sempre no seu âmago, Psyche, deambulava como qualquer mísero ser desafortunado.
Tomando por seu livre arbítrio a precisa vontade de sair do palácio de penas e sonhos, somente com o fino tecido suspenso no corpo ao qual se poderia chamar de vestes, as sandálias coçadas com que inicialmente tomara a viagem, e o cabelo agreste, solto batendo-lhe naquela bela postura.
Quis abandonar o sonho, desceu o monte, as pedras ferviam do calor, queimando-lhe a vista como a miragem mais insípida. Após meses de solidão e relento depara-se com aquela construção de pedras e colunas entre dois montes verdejantes, como se de dois seios perfeitos se tratassem, assim se encontrava no centro, o Templo de Afrodite. A bela Deusa cuidando do seu adorado filho, ao mesmo tempo que se sentira enganada, não podia deixar que nele lhe coubesse a culpa do seu fracasso. Era naquela rapariga idiota que a culpa devia de ser carregada. Culpa por despertar tantas atenções pela sua beleza, culpa por desgovernar o seu próprio filho dos seus próprios sentidos. E iria fazê-la pagar bem caro. Psyche entrou aos tropeções no templo. Desgastada e faminta da viagem que fizera, tentou arduamente manter-se de pé até ao que lhe fosse mais próximo estar da figura marmórea de Afrodite.
De todos os templos que já visitara aquele era sem dúvida o mais belo. Roseiras encaracolavam nas fachadas, vermelhas e róseas no contraste da pedra branca, um doce perfume de macieira invadia-lhe o olfacto, enquanto belas mulheres se alimentavam umas às outras com enormes cachos de uvas roxas. O ambiente chegara até ser ilusório e desconcertante.
Mas a figura principal daquele puzzle de fantasias, era sem dúvida a divindade desse mesmo templo.
A estátua de Afrodite era de grandes proporções, mais uma prova do seu próprio ego e vaidade. Completamente desnudada e de corpo perfeito, de cabelos que lhe cobriam o circular jovial dos seios até à curvatura das nádegas e o rosto. Pelos deuses, todo ele como se fosse esculpido lasca a lasca pela própria formosura.
Psyche que já se sentia extasiada com o que lhe rodeava, ao olhar para dentro dos olhos de Afrodite, sentiu que aquela beleza imortal seria causadora porém do arrepio que lhe atravessara o seu próprio corpo, como uma corrente gelada de um rio do norte. O corpo da Deusa porém despertou diante dos olhos de Psyche, decidida a fazer da rapariga joguete, decide então impor-lhe uma série de tarefas, esperando que delas nunca se desincumbisse, ou melhor, que tanto se desgastasse com a sua concretização que perdesse a beleza que possuía. Assim, já ninguém, mortal ou imortal lhe poderia tirar o título que tanto desfrutava. A luz atenuou-se no templo, incidindo entre as duas belas mulheres. Psyche, protegeu o olhar com as costas das mãos, no momento em que Afrodite vozeou, a sua alma preenchera-se de silêncio.
- Estas são as minhas condições! – Bravou a Deusa – Dar-te-ei quatro trabalhos. Se no fim cumprires com êxito as tarefas que te incubo farei pelos meus meios que Eros a ti regresse.
Estás disposta a aquiescer às minhas vontades? – Perguntou Afrodite por fim.
Psyche respirando fundo, por fim anuiu.
- Que seja feita a sua vontade. – Disse a bela rapariga, de queixo erguido. O sorriso de Afrodite após aquelas palavras transparecia numa mescla de júbilo e escárnio. Seria nesse preciso momento que iria saborear para si mesma a queda da ninharia.

Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

Cœur de la divinité - II

O corpo quando ávido, arfa num acto satisfatório abduzido pelo prazer. Porém, não era somente essa força carnal que os movia. Não eram feitos por actos suados, crus e desprovidos de amor.
Zeus

 
Eros et Psyche

II
Acreditando que partilhava o seu leito com a Monstruosidade, Psyche, não poderia imaginar que por baixo daqueles mantos grossos de linho negro, se encontrava Eros. Este, que escondendo a sua verdadeira natureza para que sua mãe, Afrodite, não descobrisse que a desobedecera, fizera prometer à bela moça que jamais e de algum modo lhe removeria o manto que lhe cobria o corpo. A promessa fora selada por palavras, pois quando se toma o coração os olhos cegam.
Psyche encontrava agora o seu próprio mundo de fantasia, iludida, amada, desejada...
Para quê arruinar o que lhe haveria sido dado, para quê querer saber quem, ou o que era aquele ser. Se fora castigo, merecia-o, mas, ao longo da sua vida, nunca realizara o quão 'viva' estava, como agora.
Solstícios passavam no caminhar do tempo. A vivacidade das folhas ressequía, os prados verdejantes pintavam-se de branco e retomavam o verde, os pássaros cantavam e silenciavam entre equinócios. E Psyche, continuava no palácio que fora criado só para ela sedenta de saudades daqueles que ficaram para trás ao longo da sua jornada.
A bela mulher caíu na mesma noite aos pés da Monstruosidade, implorando para que este a permitisse ver as suas irmãs, das quais se invadia de saudades. Mas Eros era coerente, negou por todas as vezes que Psyche lhe implorava o consolo das que lhe eram do mesmo sangue, advertendo-a insipidamente por entre palavras ocas e sem emoção.
- Nada há de mais temível entre todos os mundos, que a inveja das mulheres.
Porém a rapariga ingénua não o entendia, procurou-o em todas as luas, rogando, para que consentisse a visita.
A 'Monstruosidade Divina' por fim aquiesceu.

Ao entrarem para aquele palácio surrealista, ao mesmo tempo que estarrecidas, as irmãs de Psyche constataram que a piedade que lhes tomou o pensamento ao início fora trocada pelas lanças mortais da inveja. Como poderia que aquela pobre criatura pudesse viver num palácio bem maior e bem mais luxuoso que o delas, como pudera Psyche negar-lhes a sua riqueza, afinal, era o que de mais comum se fazia em família, como que abutres ao redor de uma carcaça.
Sabendo porém, que a jovem rapariga nunca havia visto a face da Besta com que se deitava, qual par de serpentes, sorrateiras no seu ouvido, instigando e deturpando. Sugerindo que de noite, quando a Monstruosidade adormecesse em seu leito, Psyche, tomasse uma lâmpada e uma faca. Para que com uma pudesse iluminar o seu rosto, e com a outra se este fosse mesmo um monstro, o mataria, tomando de seguida posse de todas as suas riquezas.
A noite porém chegava, e a bela rapariga, inundada pelas vozes da inveja, pensando que todos aqueles conselhos venenosos foram ditos por amizade e preocupação, deixou que o Monstro adormecesse. Foi então que debaixo da tapeçaria retirou os dois objectos. Com a lâmpada iluminou todo o espaço envolvente, depois surgiria a faca prateada e reluzente que continha a intenção de matar aquele ser que dormitava a seu lado.
Aproximando a luz da lâmpada para próximo do rosto da Besta, ergueu a faca sem relutância, e quando num movimento sem remorso a ergueu para que de seguida a voltasse a descer em direcção ao rosto da Monstruosidade, cessou.
Não conseguia mover nada além dos seus lábios que se curvaram em espanto com a beleza daquela criatura adormecida. Pousou a faca lentamente, ao mesmo tempo que aproximava a lâmpada para que melhor pudesse contemplar a face daquela divindade. Mas como por castigo pela ousadia, uma gota óleo caíra da lâmpada, rolando na direcção do ombro de Eros que acordado de sobressalto, olha para o rosto apavorado de Psyche. Seguidamente um ardor lhe invade, a gota transformara-se de imediato numa chaga.
- O amor está ferido!!! - disse Eros gritando.
Ergueu as asas irado e atraiçoado, bradando aos cantos da divisão, bradando aos cantos da Terra.
- O AMOR NÃO SOBREVIVE SEM CONFIANÇA!!!
Voou para bem longe, enlouquecido e repetindo para si mesmo vezes sem conta as mesmas palavras: 'O amor não sobrevive sem confiança...'
Deixando para trás aquela a quem ofereceu o seu coração, sozinha e desamparada, para que vivesse com o seu erro naquele imenso palácio que para ela mandara criar. Prisioneira da sua vontade, nas catacumbas da sua ira.
Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

"Nor yet content, he from his quiver drew,
Sharpened with skill divine, a shining dart:
No need had he for bow, since thus too true
His hand might wound her all-exposed heart;
Yet her fair side he touched with gentlest art,
And half relenting on her beauties gazed;
Just then awaking with a sudden start
Her opening eye in humid lustre blazed,
Unseen he still remained, enchanted and amazed.
The dart which in his hand now trembling stood,
As o'er the couch he bent with ravished eye,
Drew with its daring point celestial blood
From his smooth neck's unblemished ivory:
Heedless of this, but with a pitying sigh
The evil done now anxious to repair,
He shed in haste the balmy drops of joy
O'er all the silky ringlets of her hair;
Then stretched his plumes divine, and breathed celestial air."
Cupid and Psyche,1805, Mary Tighe

Cœur de la divinité - I

Seria o amor sempre jovem se espelhado numa criança que nunca crescesse. Assim guardaria sempre a sua essência no frasco da imortalidade.
Zeus

 Eros et Psyche

I

Nascida sob a boa estrela cantante, a terceira filha do soberano terreno seria a mais bela de todas as mulheres. Assim era Psyche. Porém, dado que não sobrara nela traços de vulgaridade mas de formosura divina, fora desencadeada a inveja naquela que possuía a fama da mesma estirpe.
Afrodite, consumida pela cobiça de sugar para si as atenções como sempre se habituara, não se livrou de uivar por entre a montada do sexo desinteressado.
- Tolos. - pensara a Deusa, pois todos aqueles que veneram são escravos da sua divindade. Quem diria, que a beleza seria cruel, e muito mais quando se instalava no negrume do coração de uma rainha pega. Não sabia amar, perguntando-se se seria virtude ou desespero.
Ao ver a bela moça no seu inconsciente e as paixões que despertara através dela, a Deusa, libertou o seu queixume numa das flechas do seu filho querubim.
Eros, seria esse o nome do homem criança. Foi incumbido de atravessar o véu e disparar a seta onde suspendia o coração de um porco.
Como punição à sua boniteza, Psyche, cairia de amores pelo pavoroso suíno. Mas algo fez o coração do homem criança disparar, algo inconceptível para a sua natureza. Estava destinado a esventrar corações como se de um ritual se tratasse, e agora, que vira aquela doce criatura de cabelos de trigo e asas de borboleta sentira-se incapaz de trespassar qualquer outro coração, senão o dele mesmo.
Ironia essa, pensou deambulando através do véu.
Psyché porém nunca chegara a se interessar por alguém. O seu Pai Soberano, entristecido por não conseguir noivar a sua linda filha dirige-se ao Oráculo de Delfos, onde sacerdotisas sucumbiam aos pés de Apolo num transe de frenesim e orgias a fim de revelar poderosas profecias.
- Existe no âmago da beleza, a monstruosidade. - Inalou de novo a sacerdotisa vermelha. O corpo deslavado em suores, a mescla de ervas queimadas e pêlos púbicos inundando o ar. - A bela terá como destino a besta.
O Pai Soberano confronta-se com o desgosto e a tristeza. No reencontro com a sua linda e adorada filha, leva-a tendo em sua mão os seus cabelos jubilosos. Arrastando-a por entre a terra onde a larga sob o mais íngreme rochedo.
- Borboleta, agora que te corto as asas, deixo-te à tua sorte. - Bramiu o Pai Soberano - Que Zeus tenha piedade da tua alma. - Benzeu-se.
Zéfiro, que dançava próximo ao tenebroso rochedo, viu porém a bela Psyche, dormindo silenciosamente na sua inocência. O Deus do Vento limitou-se a agir, inspirou todo o ar que possuía o soprou-a para bem longe, até aos portais de um magnífico palácio, incrustado de pedras reluzentes e penas.
Nele, Psyche acordou. Desamparada e esfomeada, caminhou pelo palácio, de pés descalços e de braços entrelaçados no ventre. Porém, na sua frente se estendia um banquete de suaves vinhos, cornucópias com cachos de uvas sumarentas, pão de trigo, e queijos do melhor leite de cabra.
Algo avassalador lhe percorreu, seria gula ou desejo, a bela mulher atirou-se para a mesa, bebendo e escorrendo o vinho em cada poro da sua pele, mordiscando cada pedaço de alimento na sua frente até que...
- Psssssttt... - Sussurrou a voz no breu.
Psyche, pára. Olhando para cada canto, nada mais se via para além da mesa iluminada por candelabros. Um cenário quase que fantasmagórico.
E de novo - Psssstttt... - A voz sussurrou. De novo - Vem a mim... - .Como se lhe lançasse um feitiço através do som das palavras.
Susceptível, a bela mulher navegou rumo a elas, sentindo-se fascinada como que entorpecida.
Num leito de rosas se encontrara. Não olhou para trás, mas sentindo cada partícula de si mesma a derreter face à sussurrante respiração que se encontrava atrás de si própria. Sentindo o fervor das mãos desconhecidas percorrendo a sua silhueta, o calor que exalava do seu corpo...Fechou os olhos e deixou-se levar naquele sonho onde se deliciou com as carícias do próprio Deus do Amor.

Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

Née des feuilles

E Ela se ergueu triunfante do seu próprio calvário. Batendo de cascos num chão pueril onde pelos selvagens percorriam-lhe a maciez das coxas. A tez morena da sua pele outrora de cal no contraste das silvas, os seus cornos espiralados sob a testa morna de cabra, os seios chupados ainda humedecidos quer pelo orvalho quer pela saliva do Ente que a criou. Na sua vagina o leite derramado da eternidade.

Bona Dea vivante