sexta-feira, 30 de março de 2012

Cœur de la divinité - IV

 Eros et Psyche

IV

Les Quatre Ouvres de Psyche
Grains

Colocada num compartimento fechado, Psyche, depara-se com um gigantesco monte de grãos. Como se a colheita de diversos anos de todos os campos do mediterrâneo, estivesse agora transformada numa pilha de minúsculas partículas térreas, no fundo daquela parede de pedra.
Afrodite fora bem clara nas suas tarefas. Teria de separar todos os grãos por cada espécie no espaço de uma noite. Apenas a visão daquele monte serviria para se manter já cansada mesmo sem ter começado a prova.
Decide então, dar inicio ao teste, expirando a derrota das narinas.
Sentando-se próxima da base da pilha, a bela rapariga começa então a separar grão a grão de acordo com o que lhe havia sido pedido, fazendo pequenos montes individuais. Com o passar das horas, a exaustão toma-lhe o corpo, a vista turva-lhe pesadamente, ao ponto que caí sobre o amontoado de grãos, adormecendo completamente esgotada.
Durante o seu profundo sono, surgem sorrateiramente das brechas da divisão pequenas e inúmeras formigas que se aprontam dignamente a empilhar todos os grãos pela respectiva ordem, separando um a um cuidadosamente.
Em plena madrugada, Psyche acorda surpreendida visto que toda a tarefa fora terminada prontamente dentro do prazo.

La Laine D'or
A missão seguinte, consistia em que Psyche se encarregasse de trazer diante de Afrodite, alguma lã dourada produzida unicamente pelos lendários carneiros das terras longínquas. Visto que a sua localização era remota, a bela rapariga, encaminha-se na difícil jornada pelos seus próprios pés, possuindo somente um cantil de pele de cabra com alguma água e um pedaço duro de pão.
Após longos trilhos sob a quentura do Sol, Psyche, encontra por fim os carneiros da lã dourada. Sem se precaver e pensando que bastaria pôr-lhes a mão como se se tratassem de comuns bezerros esperando pela tosquia, a rapariga é sobressaltada por toda uma armação de chifres espiralados, de cascos brutos e dentes maciços e vorazes na sua direcção. Acabara por entrar no seu território, tentando violar aquilo de que mais precioso possuíam as subtis criaturas. Nunca esperando encontrar nelas o seu leito de morte.
Subitamente, entre os juncos, Psyche ouve uma voz sussurrante e familiar que lhe aconselha discretamente:
Junto ao negrume dos espinheiros,
onde carneiros vão beber
o licor das margens do rio,
alcança as pontas dos espículos
e verás concluído o teu desafio.
Assim se encaminhou a rapariga, e nas pontas daqueles mesmos espinheiros, tal como a voz suave proferira, fios de lã dourada esvoaçavam pendentes, qual bandeira ao vento.

L'eau

Desde criança que ouvira falar do Rio Estige, ou como os antigos o intitulavam, o Rio da Imortalidade, criado pelo próprio Hades. Mas nunca pensara que um dia o iria presenciar, e principalmente que teria de colher da água mais pura de todos os mundos.
Com um delicado frasco entre as mãos já calejadas, Psyche, encontra-se diante da sua mais impossível tarefa. Teria de escalar a alta e íngreme montanha para que enchesse daquela água o vidrinho que possuía .
Deu assim inicio à escalada, tendo numa só mão o frasco, que fazia com que a tarefa fosse ainda mais complicada do que já era na realidade. Puxou a sua vontade como um corpo pelas rochas, cortando-se e empoeirando-se nas mesmas. Subiu até onde conseguia, pé a pé, com uma só mão na escarpa. Até que o deslize se antecipou, o pé derrapara e todo o seu corpo fora sugado numa grande queda, deslizando velozmente numa dor infinita.
Depois disso, só se lembrara da maciez dum solo movível, não conseguia abrir os olhos na totalidade, mas julgara ver vislumbres de asas batendo forçosamente contra o vento, e de um grito agudo que lhe entorpecia ainda mais a audição.
Zeus havia lhe enviado as suas águias, surgindo do azul celeste. Com o bico dourado e aguçado retiraram-lhe o frasco da mão. Voando com Psyche montada, até ao cume da montanha onde nascia a fonte do Rio Imortal, onde o vidro por fim se enchia daquela água.

Le Beauté de Perséfone

Afrodite enraivecida pelo sucesso da bela rapariga, decide propor-lhe a quarta e última tarefa.

A fim de acabar de vez com a vida da rival, a Deusa pede a Psyche que esta desça até ao Submundo, inventando por entre artimanhas que tinha perdido um pouco da sua beleza ao cuidar do seu filho Eros, e que necessitava de um pouco da beldade da Soberana daquele mesmo Reino.
Afrodite estava certa que assim que a rapariga fizesse o pedido a Perséfone, esta nunca mais regressaria viva, pois quem se atreveria a fazer tal pedido à esposa de Hades?

Psyche, sendo ingénua lança-se ao abismo sem mais demoras. Descendo a escadaria espiralada até ao campo de Elísios. Desaparecendo numa barca de madeira putrefacta, com uma alma obscura e sem face, de mantos negros sob a pele óssea.
Ao passar a margem do Rio das Almas, a rapariga, encontra Cérbero que ali guarda as portas do Submundo sob três cabeças ameaçadoras de cão. Psyche pede ao animal que a guie até à sua Rainha, e este, avaliando-a, decide realizar o seu pedido.
Perséfone era uma mulher, de veras, encantadora e característica, sentada magnificamente num trono de ébano enquanto segurava um facho com fumos negros, com cabelos do mesmo tom entrelaçados com papoilas e narcisos por cima de vestes escarlates.

Ao deparar-se com aquela jovem mulher no meio do salão obscuro, andando pausadamente com uma caixa ornamentada, Perséfone ergue-se do seu trono, e, estalando os dedos faz levitar dolorosamente a jovem mulher até à sua presença. Deixando-a próxima da sua respiração como se lesse a sua alma com o próprio olfacto.
- Que faz aqui uma reles mulher como tu? – Sibilou a Soberana, erguendo uma sobrancelha.
- Venho fazer-lhe um pedido – Disse Psyche, intimidando-se – Peço-lhe que me oiça, pois, ao que estou encarregue de lhe pedir, salvará a minha vida de toda a morte a qual vivo.
A rapariga, parecendo verdadeira e humilde a Perséfone, caí nas lajes do salão, ecoando à sua volta como um saco de ossos num beco esquecido.
- Interessante… - Murmurou a Rainha. – Qual é o teu pedido afinal?
Psyche elevou a caixa ornamentada até próximo da Soberana, e com toda a coragem que reunira pediu-lhe então para que enchesse o conteúdo com a sua beleza, para que assim pudesse ofertar a Afrodite, como lhe havia pedido.
Perséfone após ouvir aquele despropositado pedido, ergueu a cabeça para trás das costas e explodiu numa gargalhada estridente deixando a bela rapariga ainda mais intimidada com a sua reacção.
- Ahh…Afrodite – Disse a Rainha, rindo. – Se julgas que faço parte das tuas teias enganas-te minha cara, pois vou dar a esta rapariga exactamente o que lhe incumbiste.
Psyche arregalando os olhos de surpresa ergue de novo a caixa, a qual Perséfone sopra para o seu conteúdo gotas do seu sangue através dos suaves lábios rubros.
A bela rapariga não crendo na sua afortunada sorte, corre de volta para o templo de Afrodite com a caixa ornamentada entre as mãos, e completamente desgastada. Parando para repousar debaixo de uma oliveira, olha de relance para o resultado da sua quarta tarefa, pensando para si mesma, o quanto a sua beleza teria se desgastado com todo aquele conjunto de provas. Não resistindo então a abrir o seu conteúdo e a ser inundada por um sentimento profundo que a invadira. Adormecendo profundamente encostada ao tronco daquela árvore.
*
Curado da sua queimadura, desde o incidente da lâmpada, Eros lança-se ao encontro de Psyche, apanhando a beleza de Perséfone com as mãos em concha, e colocando-a de novo no interior da caixa ornamentada.
O Deus decide então acordar a rapariga do seu sono profundo, ordenando-lhe que devolva por fim o conteúdo da caixa a Afrodite.

*
L'amour et L'esprit
Extasiada por ver na sua frente, aquele que mais amava, Psyche, lança-se como a corrente forte de um rio até Afrodite. Esta, enfurecida por ver que a rapariga cumprira todas as provações não tem outro remédio senão engolir o seu próprio orgulho e tomar a beleza de Perséfone nas suas mãos.
Enquanto Eros voa rasgando os céus até ao trono de Zeus, onde de joelhos pede que, Este, o unifique com Psyche. O Deus dos Deuses, anuindo com a sua face decorada de luz, coloca a mão sob os cabelos encaracolados do jovem, arrancando-lhe uma mecha de pêlos dourados.
Misturando em sangue a mecha de ouro, Zeus dá a beber a Psyche, no interior de um cálice incrustado de sonhos, a doce poção. Ao qual, a bela rapariga, no sétimo gole vê as suas costas se rasgarem, surgindo delas, asas reluzentes de borboleta.
Tornando-se assim, imortal.
Fin

Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

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