sexta-feira, 30 de março de 2012

Cœur de la divinité - III

Até mesmo um simples desejo, pode conter no seu núcleo o poder para toda a transformação.
Zeus


Eros et Psyche

III
Desamparada nos próprios subúrbios, vagueando como se a luz que a mantinha viva se tivesse apagado para sempre no seu âmago, Psyche, deambulava como qualquer mísero ser desafortunado.
Tomando por seu livre arbítrio a precisa vontade de sair do palácio de penas e sonhos, somente com o fino tecido suspenso no corpo ao qual se poderia chamar de vestes, as sandálias coçadas com que inicialmente tomara a viagem, e o cabelo agreste, solto batendo-lhe naquela bela postura.
Quis abandonar o sonho, desceu o monte, as pedras ferviam do calor, queimando-lhe a vista como a miragem mais insípida. Após meses de solidão e relento depara-se com aquela construção de pedras e colunas entre dois montes verdejantes, como se de dois seios perfeitos se tratassem, assim se encontrava no centro, o Templo de Afrodite. A bela Deusa cuidando do seu adorado filho, ao mesmo tempo que se sentira enganada, não podia deixar que nele lhe coubesse a culpa do seu fracasso. Era naquela rapariga idiota que a culpa devia de ser carregada. Culpa por despertar tantas atenções pela sua beleza, culpa por desgovernar o seu próprio filho dos seus próprios sentidos. E iria fazê-la pagar bem caro. Psyche entrou aos tropeções no templo. Desgastada e faminta da viagem que fizera, tentou arduamente manter-se de pé até ao que lhe fosse mais próximo estar da figura marmórea de Afrodite.
De todos os templos que já visitara aquele era sem dúvida o mais belo. Roseiras encaracolavam nas fachadas, vermelhas e róseas no contraste da pedra branca, um doce perfume de macieira invadia-lhe o olfacto, enquanto belas mulheres se alimentavam umas às outras com enormes cachos de uvas roxas. O ambiente chegara até ser ilusório e desconcertante.
Mas a figura principal daquele puzzle de fantasias, era sem dúvida a divindade desse mesmo templo.
A estátua de Afrodite era de grandes proporções, mais uma prova do seu próprio ego e vaidade. Completamente desnudada e de corpo perfeito, de cabelos que lhe cobriam o circular jovial dos seios até à curvatura das nádegas e o rosto. Pelos deuses, todo ele como se fosse esculpido lasca a lasca pela própria formosura.
Psyche que já se sentia extasiada com o que lhe rodeava, ao olhar para dentro dos olhos de Afrodite, sentiu que aquela beleza imortal seria causadora porém do arrepio que lhe atravessara o seu próprio corpo, como uma corrente gelada de um rio do norte. O corpo da Deusa porém despertou diante dos olhos de Psyche, decidida a fazer da rapariga joguete, decide então impor-lhe uma série de tarefas, esperando que delas nunca se desincumbisse, ou melhor, que tanto se desgastasse com a sua concretização que perdesse a beleza que possuía. Assim, já ninguém, mortal ou imortal lhe poderia tirar o título que tanto desfrutava. A luz atenuou-se no templo, incidindo entre as duas belas mulheres. Psyche, protegeu o olhar com as costas das mãos, no momento em que Afrodite vozeou, a sua alma preenchera-se de silêncio.
- Estas são as minhas condições! – Bravou a Deusa – Dar-te-ei quatro trabalhos. Se no fim cumprires com êxito as tarefas que te incubo farei pelos meus meios que Eros a ti regresse.
Estás disposta a aquiescer às minhas vontades? – Perguntou Afrodite por fim.
Psyche respirando fundo, por fim anuiu.
- Que seja feita a sua vontade. – Disse a bela rapariga, de queixo erguido. O sorriso de Afrodite após aquelas palavras transparecia numa mescla de júbilo e escárnio. Seria nesse preciso momento que iria saborear para si mesma a queda da ninharia.

Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

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