sexta-feira, 30 de março de 2012

Cœur de la divinité - II

O corpo quando ávido, arfa num acto satisfatório abduzido pelo prazer. Porém, não era somente essa força carnal que os movia. Não eram feitos por actos suados, crus e desprovidos de amor.
Zeus

 
Eros et Psyche

II
Acreditando que partilhava o seu leito com a Monstruosidade, Psyche, não poderia imaginar que por baixo daqueles mantos grossos de linho negro, se encontrava Eros. Este, que escondendo a sua verdadeira natureza para que sua mãe, Afrodite, não descobrisse que a desobedecera, fizera prometer à bela moça que jamais e de algum modo lhe removeria o manto que lhe cobria o corpo. A promessa fora selada por palavras, pois quando se toma o coração os olhos cegam.
Psyche encontrava agora o seu próprio mundo de fantasia, iludida, amada, desejada...
Para quê arruinar o que lhe haveria sido dado, para quê querer saber quem, ou o que era aquele ser. Se fora castigo, merecia-o, mas, ao longo da sua vida, nunca realizara o quão 'viva' estava, como agora.
Solstícios passavam no caminhar do tempo. A vivacidade das folhas ressequía, os prados verdejantes pintavam-se de branco e retomavam o verde, os pássaros cantavam e silenciavam entre equinócios. E Psyche, continuava no palácio que fora criado só para ela sedenta de saudades daqueles que ficaram para trás ao longo da sua jornada.
A bela mulher caíu na mesma noite aos pés da Monstruosidade, implorando para que este a permitisse ver as suas irmãs, das quais se invadia de saudades. Mas Eros era coerente, negou por todas as vezes que Psyche lhe implorava o consolo das que lhe eram do mesmo sangue, advertendo-a insipidamente por entre palavras ocas e sem emoção.
- Nada há de mais temível entre todos os mundos, que a inveja das mulheres.
Porém a rapariga ingénua não o entendia, procurou-o em todas as luas, rogando, para que consentisse a visita.
A 'Monstruosidade Divina' por fim aquiesceu.

Ao entrarem para aquele palácio surrealista, ao mesmo tempo que estarrecidas, as irmãs de Psyche constataram que a piedade que lhes tomou o pensamento ao início fora trocada pelas lanças mortais da inveja. Como poderia que aquela pobre criatura pudesse viver num palácio bem maior e bem mais luxuoso que o delas, como pudera Psyche negar-lhes a sua riqueza, afinal, era o que de mais comum se fazia em família, como que abutres ao redor de uma carcaça.
Sabendo porém, que a jovem rapariga nunca havia visto a face da Besta com que se deitava, qual par de serpentes, sorrateiras no seu ouvido, instigando e deturpando. Sugerindo que de noite, quando a Monstruosidade adormecesse em seu leito, Psyche, tomasse uma lâmpada e uma faca. Para que com uma pudesse iluminar o seu rosto, e com a outra se este fosse mesmo um monstro, o mataria, tomando de seguida posse de todas as suas riquezas.
A noite porém chegava, e a bela rapariga, inundada pelas vozes da inveja, pensando que todos aqueles conselhos venenosos foram ditos por amizade e preocupação, deixou que o Monstro adormecesse. Foi então que debaixo da tapeçaria retirou os dois objectos. Com a lâmpada iluminou todo o espaço envolvente, depois surgiria a faca prateada e reluzente que continha a intenção de matar aquele ser que dormitava a seu lado.
Aproximando a luz da lâmpada para próximo do rosto da Besta, ergueu a faca sem relutância, e quando num movimento sem remorso a ergueu para que de seguida a voltasse a descer em direcção ao rosto da Monstruosidade, cessou.
Não conseguia mover nada além dos seus lábios que se curvaram em espanto com a beleza daquela criatura adormecida. Pousou a faca lentamente, ao mesmo tempo que aproximava a lâmpada para que melhor pudesse contemplar a face daquela divindade. Mas como por castigo pela ousadia, uma gota óleo caíra da lâmpada, rolando na direcção do ombro de Eros que acordado de sobressalto, olha para o rosto apavorado de Psyche. Seguidamente um ardor lhe invade, a gota transformara-se de imediato numa chaga.
- O amor está ferido!!! - disse Eros gritando.
Ergueu as asas irado e atraiçoado, bradando aos cantos da divisão, bradando aos cantos da Terra.
- O AMOR NÃO SOBREVIVE SEM CONFIANÇA!!!
Voou para bem longe, enlouquecido e repetindo para si mesmo vezes sem conta as mesmas palavras: 'O amor não sobrevive sem confiança...'
Deixando para trás aquela a quem ofereceu o seu coração, sozinha e desamparada, para que vivesse com o seu erro naquele imenso palácio que para ela mandara criar. Prisioneira da sua vontade, nas catacumbas da sua ira.
Baseado no romance de O Asno de Ouro de Apuleio - Metamorphoseon Libri XI

"Nor yet content, he from his quiver drew,
Sharpened with skill divine, a shining dart:
No need had he for bow, since thus too true
His hand might wound her all-exposed heart;
Yet her fair side he touched with gentlest art,
And half relenting on her beauties gazed;
Just then awaking with a sudden start
Her opening eye in humid lustre blazed,
Unseen he still remained, enchanted and amazed.
The dart which in his hand now trembling stood,
As o'er the couch he bent with ravished eye,
Drew with its daring point celestial blood
From his smooth neck's unblemished ivory:
Heedless of this, but with a pitying sigh
The evil done now anxious to repair,
He shed in haste the balmy drops of joy
O'er all the silky ringlets of her hair;
Then stretched his plumes divine, and breathed celestial air."
Cupid and Psyche,1805, Mary Tighe

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